"Não tenho receio da morte, mas preocupa-me o trajeto que a ela conduz"

  • 16/09/2025

O médico psiquiatra Júlio Machado Vaz acaba de lançar 'Outonecer', uma obra que convida os leitores a refletir sobre o envelhecimento e "olhar para dentro", enquanto faz um exercício de autoajuda e fala do medo que este processo (também) lhe provoca.

 

Escrito em tom confessional, sem nunca perder o humor que o caracteriza, o também sexólogo aborda em 'Outonecer' diversos aspetos relacionados com o envelhecimento.

Do amor ao sexo, da perda às conquistas, das viagens à música, da atualidade política à inteligência artificial, dos filhos e netos aos amigos, sem esquecer os seus animais, que também considera serem família, Júlio Machado Vaz faz deste livro um autêntico "hino a todas as estações do ano", que é como quem diz, uma viagem pelo seu passado, presente e futuro.

O Notícias ao Minuto entrevistou o especialista, por e-mail, onde este se debruçou não só sobre o seu 'Outonecer' como sobre o poder do amor (e do humor), da sexualidade, do impacto das redes sociais na vida das pessoas, do crescimento do ódio e do populismo e até do "naufrágio" da demência. 

É natural que "a urgência de viver" se acentue com o passar dos anos

Lançou recentemente 'Outonecer', onde faz várias reflexões sobre o envelhecimento e convida quem passa por esta fase a agir no lugar de reagir, uma vez que "é urgente viver". Sempre teve essa 'urgência' ou foi ganhando consciência dela ao longo de todas as estações da vida? Porquê? 

É natural que "a urgência de viver" se acentue com o passar dos anos. Afinal vamo-nos apercebendo que a morte não é uma realidade abstrata, mas nos espera a breve trecho. Essa noção, em geral, faz-nos repensar prioridades e tentar despir a nossa caminhada de preocupações e objetivos que passamos a considerar não fundamentais.

Este livro é uma espécie de catarse? De autoajuda?

Em livros como 'Muros', o 'Tempo dos Espelhos' e 'Outonecer' procurei conhecer-me melhor através da palavra escrita. Nesse sentido, poderíamos falar, literalmente, de autoajuda. Quanto aos outros, jamais tive a veleidade de os ensinar a viver, não nasci para influencer. 

Tem receio do "volteio sem regresso"?

Não tenho receio da morte, trata-se de um simples regresso à não existência. Em contrapartida, preocupa-me a qualidade do trajeto que a ela conduz, razão pela qual gostaria de manter a autonomia necessária para tomar as decisões que julgue adequadas.

O amor é uma arma poderosa para nos ajudar a ter uma vida e não apenas sobreviver

E o amor como é que pode ajudar a vencer o medo de envelhecer?

O amor é uma arma poderosa para nos ajudar a ter uma vida e não apenas sobreviver. Em qualquer idade!

O amor vai mudando ao longo da vida? A forma como se vive o amor na fase adulta e no ‘outonocer’ é diferente? Em que aspetos?

O amor 'outonal' é amiúde mais maduro, por menos sujeito à sombra 'imperialista' da paixão.  Uma eventual pacificação não é sentida como um afeto de segunda ordem, mas sim como o aprofundar de uma intimidade que vai muito para além da nudez dos corpos.

Entre as reflexões sobre o passado, o presente e o futuro, recorda várias memórias. Quais são para si as mais felizes e quais as mais marcantes que lembra neste livro?

Guardo recordações gratas de viagens ao Languedoc, à Provença e à minha querida Barcelona, mas talvez as mais marcantes residam em Cantelães, onde sempre que posso reúno a tribo à volta da mesa da cozinha. Essas 'tainadas', se me permitem o termo, sempre se revestiram de ternura e alegria sem comparação.

A certa altura revela que os seus pais sofreram de demência e que isso o levou a ter medo de também ter esta doença. De que forma é que este tipo de 'traumas' pode afetar a forma como se vive o envelhecimento?

Como tantos outros nutro um profundo receio perante a hipótese de perder a lucidez. Os tristes fins de vida de meus pais não fizeram nascer essa preocupação, mas sublinharam-na a traço grosso. Pelo que significaria para mim e para os que me rodeiam, o espetáculo do naufrágio de quem amamos é profundamente angustiante.

A sexualidade dos mais velhos ainda é sujeita a discriminação

No livro fala também de um tema que é ainda muitas vezes visto como tabu entre a terceira idade: a sexualidade. De que forma é que desmistificar este tema pode ajudar a viver esta fase da melhor forma?

A sexualidade dos mais velhos ainda é sujeita a discriminação. Pese embora os avanços culturais não é raro que os mais velhos sejam vistos como assexuados ou reduzidos à abençoada ternura. É falso. A uma eventual diminuição quantitativa é frequente que se junte a descrição de uma melhoria qualitativa pela diminuição de tabus e fantasias de competição e aprofundamento da comunicação.

Em 'Outonecer' fala também das redes sociais, da inteligência artificial. Como médico psiquiatra, qual o principal impacto que estas novas tecnologias têm no envelhecimento? E na vida em geral? Quais os prós e contras, na sua opinião?

As novas tecnologias podem e devem ser preciosas na luta contra a epidemia de solidão que assola toda uma sociedade, mas é particularmente feroz para os idosos. Na vida em geral os benefícios são evidentes, da ciência ao quotidiano mais corriqueiro, bastará lembrar os períodos de confinamento durante a pandemia. Como psiquiatra preocupam-me sobretudo os cada vez mais numerosos casos de dependência, que estão longe de ser monopólio dos mais jovens. Essa substituição do real pelo virtual acarreta dificuldades preocupantes a nível do desenvolvimento psicológico e das ferramentas que possibilitam a empatia e a coesão social.

Acha que estas também ajudam a espalhar o discurso de ódio e o populismo?

Sem a menor dúvida, potenciam o derramar das nossas tendências mais mesquinhas a coberto ou não do anonimato. Se acrescentarmos a este facto a paixão do algoritmo pelo aumento de visualizações sem qualquer preocupação ética está criado o meio de cultura ideal para o ódio e o populismo, pelas certezas que veiculam.

Apesar de abordar vários temas sérios - como a perda de várias pessoas -, de forma tocante, nunca perde o humor. O humor é também uma forma de terapia?

Sim, quando perder a capacidade de rir de mim próprio não só não terei direito de sorrir, divertido, perante a vida em geral, como temerei pela minha saúde mental, o riso é uma forma privilegiada de autocrítica e esta é indispensável à lucidez.

Leia Também: Cinco livros que prometem ajudar as crianças no regresso à escola

FONTE: https://www.noticiasaominuto.com/cultura/2852038/nao-tenho-receio-da-morte-mas-preocupa-me-o-trajeto-que-a-ela-conduz#utm_source=rss-ultima-hora&utm_medium=rss&utm_campaign=rssfeed


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